Com alegria e satisfação, recebo o convite da Unataq para, no âmbito das comemorações do bicentenário da implantação da taquigrafia no Brasil, contar um pouco da história da taquigrafia na Câmara Municipal de São Paulo – CMSP. Mas como contar essa história se não existem estudos sobre a taquigrafia da CMSP? A resposta foi simples: pedir ajuda às atas, à própria taquigrafia e também recorrer a documentos legislativos de época. Convido-os, então, para juntos “passearmos” nos registros da Câmara, cujas transcrições conservam a “graphia” original de modo a realçar o valor histórico da pesquisa.
Informa a Câmara, em seu Portal, que suas atividades estão registradas em atas desde 1562, o que a torna uma das mais antigas do Brasil, e que a partir de 1904, com a implantação do serviço taquigráfico, as atas passaram a registrar também a íntegra dos debates das sessões.
Colegas, comecemos o nosso passeio nas primeiras sessões de 1899. Na de 9 de janeiro surge a primeira proposta de prestação de serviço de taquigrafia, assim registrada na ata:
Proposta de Aurelio Vaz e Manoel Vaz para estenographar os debates da Camara e organizar as sessões conforme as bases que apresentam.
O Snr. Dr. Presidente informa que tendo pedido a Secretaria urna relação das verbas de despezas a cargo daquella repartição não encontrou alguma por onde pudesse correr o pagamento do serviço proposto entendendo que a Camara não pode tomar em consideração a proposta.
O Snr. Olavo Egydio, requer sejam os papeis remettidos a Commissão respectiva para que a Camara resolva sobre o assumpto.
E’ remettida a proposta a Commissão de Finanças.
O parecer solicitado pelo vereador Olavo Egydio consta do Expediente da ata de 1º de fevereiro:
PARECER N. 1
A Commissão de Finanças, tendo de dizer sobre a verba, reporta-se ao orçamento vigente (Lei n. 375), onde não encontra por onde possa correr a despesa, por serem restrictas ás necessidades de serviços conhecidas as verbas dos §§ 2º e 3º do art. 3º.
Não vê, portanto, a commissão meio de ser acceita a proposta e feita a despesa dentro do orçamento ordinario, e, não lhe parece caso de crear-se receita extraordinaria, este, de um serviço que, embora de utilidade [grifo nosso], não é da maior urgencia.
Depois das ‘larguesas’ de 1896 e 1897, não ha remedio senão submetter-se a Camara á um regimen de economias, como meio de endireitar suas finanças avariadas.
Por fim, na ata de 3 de fevereiro, apesar de reconhecida a utilidade do serviço proposto, a proposta é definitivamente rejeitada:
Discussão do projecto sobre a proposta de M. Vaz e Aurelio Vaz sobre o serviço tachigraphico da Camara com parecer da Commissão de Finanças sob n. 1. Approvado o parecer sendo regeitada a proposta.
Curiosamente, poucos dias depois, em 6 de fevereiro, o Presidente, ao declarar o jornal “Correio Paulistano” vencedor da concorrência para publicar o expediente da Câmara Municipal, deixa transparecer o que possivelmente foi o motivo da dispensabilidade do serviço de taquigrafia, ao tratar de um diferencial da proposta vencedora, apesar de não ser a mais vantajosa:
Declara mais [o “Correio Paulistano”], ter imposto a condição de fazer o mesmo jornal um bom extracto resumido dos debates das Sessões da Camara, o que foi elle acceito, a vista do que póde ser dispensável o serviço tachygraphico (…).
Não há registros, mas é muito provável que os resumos tenham sido feitos por taquígrafo(s). Ou seja, provavelmente o registro taquigráfico do Legislativo Paulistano foi implantado de forma indireta, por meio apenas do resumo dos debates, publicado com o expediente da Câmara. De todo modo, continuemos com nosso passeio.
Encontramos, na sessão de 18/10/1900, registro que demonstra certa insatisfação de um Vereador com a falta do registro integral dos debates:
Lida a acta da sessão anterior pede a palavra o Snr. Abilio Soares que diz precisar saber qual é o jornal official da casa, si o ‘Estado de São Paulo’, si o ‘Correio Paulistano’, porquanto não viu publicado fielmente [grifo nosso] o que falou em sessão de ante-hontem (…).
O sr. presidente informa que o jornal official da Camara, unicamente para a publicação do expediente, é o ‘Correio Paulistano’. Nem o ‘Estado’, nem o ‘Correio’, porém, têm contracto para publicação do resumo de debates das sessões; os representantes daquelles jornaes, em serviço espontaneo na Camara, para publicarem o resumo das sessões, limitam-se ás notas que apanham, e ao seu ver, têm elles feito até agora esse serviço com muita fidelidade e na medida das suas forças, não sendo isso a obrigação de nenhum jornal.
Nota-se que além do “Correio Paulistano”, que publica o expediente da Câmara, o jornal “Estado de São Paulo” também publica o resumo dos debates.
A vida segue e, um ano depois, em sessão de 22/10/1901, eis que surgem novas propostas para prestação do serviço taquigráfico. Conforme a ata, são considerados prejudicados:
“o requerimento de Benedicto Varella e Gama Junior [grave-se esse nome, que irá aparecer a seguir] sobre serviços tachygraphicos e a petição de Jayme Costa sobre serviço tachygraphico dos debates da Câmara”.
A pressão pela implantação do serviço de taquigrafia deveria correr solta nos corredores da CMSP, tanto que na 20ª Sessão Ordinária, de 30/5/1903, a ata assim registra:
Exgottado o expediente, pede a palavra o Snr. Francisco Baruel, e pergunta ao Snr. Secretario se o contracto estatuído entre a Secretaria da Camara e a empreza do ‘Correio Paulistano’ não determina para esta a obrigação de publicar o tramsumpto das sessões da Câmara, e assim reclama contra o facto de não terem sido noticiados especificamente cinco indicações suas que figuraram no expediente da sessão anterior.
O Snr. Dr. Gomes Cardim responde que o ‘Correio Paulistano’ é obrigado por seu contracto somente a publicar o resumo dos debates das sessões (…).
Pelo que transparece das atas, percebe-se um crescente movimento no sentido da implantação de um serviço taquigráfico, cujo ápice fica demonstrado na ata de 12/3/1904. Sob a justificativa de que “se deve melhorar a publicação dos trabalhos da Camara, collocando-a de accôrdo com a sua importancia actual, apanhando-se na íntegra as discussões e todos os trabalhos das sessões”, é aprovado projeto pelas comissões de Justiça e de Finanças “autorizando o presidente da Camara a contratar annualmente, mediante concorrencia publica, com quem mais vantagens offerecer, o serviço tachigraphico dos debates das sessões da Camara e a publicação dos respectivos annaes”.
Supimpa! Nossa pesquisa está fazendo história. Agora temos uma data para comemorar a implantação do serviço taquigráfico na CMSP. Viva 12 de março, Dia do Taquígrafo Paulistano!
Contudo, colegas, não foram localizados, a partir da aprovação desse projeto, seja nas atas das sessões ou em documentos históricos, registros sobre a efetivação do contrato do serviço taquigráfico e a organização dos Anais realizados entre 1904 e 1907, contratação essa que está implícita nas próprias atas, pois que passam a registrar, já em 1904, a íntegra dos debates das sessões. Assim, para dar continuidade à investigação e a este passeio, passo a recorrer aos documentos legislativos da época, que prosseguem a contar essa história.
A propósito, fica aqui nossas homenagens ao Arquivo Geral da Câmara, que organizou, digitalizou e indexou séries de documentos originais produzidos ou recebidos entre 1892 a 1937. Infelizmente, elas estão incompletas, pois muito material se perdeu durante o Estado Novo, causando lacunas insuperáveis nesta pesquisa.
Retomando nosso passeio, em requerimento administrativo datado de 3/2/1912, com o propósito de solicitar revisão do valor de seus serviços, o taquígrafo Manuel Alves de Souza assim requer:
“contractante do serviço de apanhamento tachygrafico dos debates da Camara Municipal e organização e publicação dos Annaes, vem respeitosamente expôr e pedir o seguinte:
Quando o abaixo assignado propoz á Camara, em 1908, fazer o serviço de organização e publicação dos Annaes, tomou para base de sua proposta, como era natural, os volumes dos annos anteriores. Ora, o volume de 1904 (primeiro anno em que se organizaram Annaes da Camara Municipal) tinha 138 paginas; o de 1905, 225; o de 1906, 222; o de 1907, 205. Deixando de lado o volume de 1904, que não podia entrar no calculo para a sua proposta, porque nelle a maior parte dos discursos se acham muitíssimo resumidos, o abaixo assignado tomou para base unicamente os volumes dos annos de 1905, 1906 e 1907, dos quaes o maior tem 225 paginas (…).”
Nossa gratidão ao colega Manual Alves de Souza, que de modo fortuito, com seu pedido de majoração do contrato, legou à posteridade tão preciosas informações sobre a história da taquigrafia paulistana.
Em 11/12/1919, assim a Secretaria da Câmara se manifesta em relação a requerimento de prorrogação de contrato apresentado em 25/11/1919 por nosso colega Manuel Alves de Souza, demonstrando a contratação de mais um taquígrafo [fragmentos]:
“O requerente é contractante dos serviços de apanhamento tachygraphico dos debates da Camara e organização e impressão dos Annaes, desde 1909, tendo sido os contractos prorogados annualmente até o presente. (…)
“Em 1916, a verba para o serviço tachygraphico foi elevada em 2:800$000 para occorrer ao pagamento de um auxiliar do tachygrapho, contractado á razão de 50$000 por sessão, de accordo com uma decisão da Camara, continuando o tachygrapho chefe com o mesmo ordenado de 500$000 mensaes. (…)
“A Secretaria, chamada a informar, nada tem a oppôr quando á prorogação requerida.”
Até 1922, o nosso colega Manoel Alves de Souza prorroga anualmente seus contratos. Em 1923, a seu pedido, as prorrogações passam a ser trienais, por legislatura, ano em que também aparece um segundo contratante, o taquígrafo Gustavo Milliet. Não há registro se, além deles, contratantes, há também uma equipe de taquígrafos para dar conta do serviço. Na prorrogação de 1926, Manuel se retira do contrato e é substituído pelo taquígrafo Francisco Ignacio da Gama Junior. E olha aqui o colega Gama Junior, que aparece na ata de outubro de 1901!
E ocorre a Revolução de 1930… A Câmara é fechada, como os demais Legislativos do País, cujos trabalhos permaneceram interrompidos (muito provavelmente com encerramento dos contratos) até a promulgação da Constituição de 1934. Após eleições diretas, as sessões são retomadas em julho de 1936, ano em que os taquígrafos Gustavo Milliet e Mariano Costa Ferreira celebraram contrato, válido por 3 anos, para a execução do serviço de apanhamento de debates das sessões. Mas o pior estava por vir: o serviço de taquigrafia não durou muito, pois a CMSP foi novamente fechada em novembro de 1937, com a instauração do Estado Novo e início de um período de grande centralização na administração pública.
Com o fim do Estado Novo, em 1945, ocorre a promulgação da Constituição de 1946, que reabre os Legislativos. Em 1º de janeiro de 1948, a Câmara é — novamente! — reaberta, inaugurando nova Legislatura, que desde o início contratou serviço de taquigrafia para registro da íntegra dos debates das sessões.
A grande inovação, para a alegria dos taquígrafos e quiçá não dizer também para a Taquigrafia, ocorre em 29 de abril de 1949. Por meio de Resolução, é criada a Seção de Taquigrafia e Mecanografia da CMSP, com quadro de 16 taquígrafos e 3 revisores, sendo que para o provimento inicial dos cargos foi aproveitado, in verbis, “o pessoal que vem trabalhando no Serviço de Taquigrafia sob a forma de contrato de empreitada desde janeiro de 1948”. As vagas remanescentes foram preenchidas posteriormente por concurso público.
De lá para cá, o serviço de taquigrafia passou por várias reformas, sendo as últimas em 2003, ano que o então Departamento Técnico de Taquigrafia passou a denominar-se Núcleo Técnico de Registro e, em 2007, Secretaria de Registro Parlamentar e Revisão.
Que pena, colegas, nosso passeio está chegando ao fim, mas nele deu para todos verem como a tachygraphia se transformou em Taquigrafia, e continua a registrar e a preservar a história desta e de tantas outras casas legislativas!
Alexandre Fonseca, taquígrafo desde 1987, e da CMSP desde 1996.